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17/03/2010

Ano Sacerdotal



Papa Bento XVI convocou por ocasião dos 150 anos da morte do Santo Cura d'Ars, João Maria Vianney, que de 19 de junho de 2009 a 19 de junho de 2010, se realize um especial Ano Sacerdotal, que terá como tema: "Fidelidade de Cristo, fidelidade do sacerdote".
O Santo Padre abrirá este Ano presidindo a celebração das Vésperas, em 19 de junho, solenidade do Santíssimo Coração de Jesus e Dia de santificação sacerdotal, na presença da relíquia de Cura d'Ars trazida pelo Bispo de Belley-Ars. Bento XVI encerrará o Ano em 19 de junho de 2010, participando de um "Encontro Mundial Sacerdotal" na Praça S. Pedro.
Durante este Ano jubilar, Bento XVI proclamará São João Maria Vianney "Padroeiro de todos os sacerdotes do mundo". Além disso, será publicado o "Diretório para os Confessores e os Diretos Espirituais", junto a uma coletânea de textos do Santo Padre sobre temas essenciais da vida e da missão sacerdotal na época atual.
A Congregação para o Clero, em parceria com os Ordinários diocesanos e os Superiores dos Institutos religiosos, será o encarregado de promover e coordenar as várias iniciativas espirituais e pastorais.
A finalidade deste Ano é ressaltar sempre a importância do papel e da missão do sacerdote na Igreja e na sociedade contemporânea, como também a necessidade de potencializar a formação permanente dos sacerdotes, relacionado-a com a dos seminaristas


DOCUMENTO DA IGREJA ANO SACERDOTAL

"LECTIO DIVINA" DO PAPA BENTO XVI

Eminência


Queridos irmãos
no episcopado e no sacerdócio!



É uma tradição muito jubilosa e também importante para mim poder iniciar a Quaresma sempre com o meu Presbitério, os Presbíteros de Roma. Assim, como Igreja local de Roma, mas também como Igreja universal, podemos empreender este caminho essencial com o Senhor rumo à paixão, rumo à Cruz, o caminho pascal.
Este ano queremos meditar os passos da Carta aos Hebreus agora lidos. O Autor desta Carta abriu um novo caminho para compreender o Antigo Testamento como livro que fala de Cristo. A tradição precedente tinha visto Cristo sobretudo, essencialmente, na chave da promessa davídica, do verdadeiro David, do verdadeiro Salomão, do verdadeiro Rei de Israel, verdadeiro Rei porque homem e Deus. E a inscrição sobre a Cruz tinha realmente anunciado ao mundo esta realidade: agora há o verdadeiro Rei de Israel, que é o Rei do mundo, o Rei dos Judeus que está na Cruz. É uma proclamação da realeza de Jesus, do cumprimento da expectativa messiânica do Antigo Testamento, a qual, no fundo do coração, é uma expectativa de todos os homens que esperam o verdadeiro Rei, que dá justiça, amor e fraternidade.
Mas o Autor da Carta aos Hebreus descobriu uma citação que até àquele momento não tinha sido notada: Salmo 110, 4 – "Tu és sacerdote segundo a ordem de Melquisedec". Isto significa que Jesus não só cumpre a promessa davídica, a expectativa do verdadeiro Rei de Israel e do mundo, mas realiza também a promessa do verdadeiro Sacerdote. Em parte no Antigo Testamento, sobretudo também em Qumran, há duas linhas separadas de expectativa: o Rei e o Sacerdote. O Autor da Carta aos Hebreus, descobrindo este versículo, compreendeu que em Cristo estão unidas as duas promessas: Cristo é o verdadeiro Rei, o Filho de Deus – segundo o Salmo 2, 7 que ele cita – mas é também o verdadeiro Sacerdote.
Assim todo o mundo cultual, toda a realidade dos sacrifícios, do sacerdócio, que está à procura do verdadeiro sacerdócio, do verdadeiro sacrifício, encontra em Cristo a sua chave, o seu cumprimento e, com esta chave, pode reler o Antigo Testamento e mostrar como precisamente também a lei cultual, que depois da destruição do Templo é abolida, na realidade se orientava para Cristo; por conseguinte, não é simplesmente abolida, mas renovada, transformada, visto que em Cristo tudo encontra o seu sentido. O sacerdócio sobressai então na sua pureza e na sua verdade profunda.
Deste modo, a Carta aos Hebreus apresenta o tema do sacerdócio de Cristo, Cristo sacerdote, em três níveis: o sacerdócio de Aarão, o do Templo; Melquisedec; e o próprio Cristo como o verdadeiro sacerdote. Também o sacerdócio de Aarão, mesmo sendo diferente do de Cristo, mesmo sendo, por assim dizer, uma só busca, um caminhar em direcção a Cristo, é contudo "caminho" rumo a Cristo, e já neste sacerdócio se delineiam os elementos essenciais. Depois Melquisedec – voltaremos sobre este aspecto – que é um pagão. O mundo pagão entra no Antigo Testamento, entra numa figura misteriosa, sem pai, sem mãe – diz a Carta aos Hebreus – aparece simplesmente, e nele aparece a verdadeira veneração do Deus Altíssimo, do Criador do céu e da terra. Assim, também do mundo pagão provém a expectativa e a prefiguração profunda do mistério de Cristo. No próprio Cristo tudo é sintetizado, purificado e guiado para o seu termo, para a sua verdadeira essência.
Vejamos agora cada um dos elementos, na medida do possível, sobre o sacerdócio. Da Lei, do sacerdócio de Aarão aprendemos duas coisas, diz-nos o autor da Carta aos Hebreus: um sacerdote para ser realmente mediador entre Deus e o homem, deve ser homem. Isto é fundamental e o Filho de Deus fez-se homem precisamente para ser sacerdote, para poder realizar a missão do sacerdote. Deve ser homem – voltaremos a este aspecto – mas não pode sozinho fazer-se mediador com Deus. O sacerdote precisa de uma autorização, de uma instituição divina e só pertencendo às duas esferas – a de Deus e a do homem – pode ser mediador, pode ser "ponte". É esta a missão do sacerdote: combinar, relacionar estas duas realidades aparentemente tão separadas, isto é o mundo de Deus – distante de nós, muitas vezes desconhecido do homem – e o nosso mundo humano. A missão do sacerdócio é a de ser mediador, ponte que une, e assim levar o homem a Deus, à sua redenção, à sua verdadeira luz, à sua verdadeira vida.
Por conseguinte, como primeiro ponto o sacerdote deve estar da parte de Deus, e unicamente em Cristo esta necessidade, esta condição da mediação é plenamente realizada. Por isso era necessário este Mistério: o Filho de Deus faz-se homem para que exista a verdadeira ponte, a verdadeira mediação. Os outros devem ter pelo menos uma autorização de Deus ou, no caso da Igreja, o Sacramento, isto é, introduzir o nosso ser no ser de Cristo, no ser divino. Só com o Sacramento, com este acto divino que nos cria sacerdotes na comunhão com Cristo, podemos realizar a nossa missão. E esta parece-me um primeiro aspecto de mediação para nós: a importância do Sacramento. Ninguém se faz sacerdote por si mesmo; só Deus me pode atrair, pode autorizar-me, pode induzir-me à participação no mistério de Cristo; só Deus pode entrar na minha vida e pegar-me pela mão. Este aspecto do dom, da precedência divina, da acção divina, que nós não podemos realizar, esta nossa passividade – ser eleitos e tomados pela mão por Deus – é um aspecto fundamental no qual entrar. Devemos voltar sempre ao Sacramento, voltar a este dom no qual Deus me dá quanto eu nunca poderia dar: a participação, a comunhão com o ser divino, com o sacerdócio de Cristo.
Tornemos esta realidade também um factor prático da nossa vida: se é assim, um sacerdote deve ser realmente um homem de Deus, deve conhecer Deus de perto, e conhece-o em comunhão com Cristo. Então devemos viver esta comunhão e a celebração da Santa Missa, a oração do Breviário, toda a oração pessoal, são elementos do ser com Deus, do ser homens de Deus. O nosso ser, a nossa vida, o nosso coração devem ser fixados em Deus, neste ponto do qual não devemos sair, e isto realiza-se, fortalece-se dia após dia, também com breves orações com as quais nos relacionamos com Deus e nos tornamos cada vez mais homens de Deus, que vivem na sua comunhão e assim podem falar de Deus e guiar para Deus.
O outro elemento é que o sacerdote deve ser homem. Homem em todos os sentidos, isto é, deve viver uma verdadeira humanidade, um verdadeiro humanismo; deve ter uma educação, uma formação humana, virtudes humanas; deve desenvolver a sua inteligência, a sua vontade, os seus sentimentos, os seus afectos; deve ser realmente homem, homem segundo a vontade do Criador, do Redentor, porque sabemos que o ser humano está ferido e a questão de "o que é o homem" é obscurecida pelo facto do pecado, que ofendeu a natureza humana até às suas profundezas. Assim diz-se: "mentiu", "é humano"; "roubou", "é humano"; mas não é este o verdadeiro ser humano. Humano é ser generoso, é ser bom, é ser homem da justiça, da prudência verdadeira e da sabedoria. Por conseguinte, sair com a ajuda de Cristo deste obscurecimento da nossa natureza para alcançar o verdadeiro ser humano à imagem de Deus, é um processo de vida que deve começar pela formação para o sacerdócio, mas que se deve realizar depois e prosseguir em toda a nossa existência. Penso que as duas coisas caminhem fundamentalmente juntas: ser de Deus e com Deus e ser realmente homem, no verdadeiro sentido que o Criador quis, plasmando esta criatura que somos nós.
Ser homem: a Carta aos Hebreus faz um realce da nossa humanidade que nos surpreende, porque diz: deve ser um que "pode compadecer-se dos ignorantes e dos que erram, pois também ele está cercado de fraqueza" (5, 2) e – depois ainda muito mais forte – "quando vivia na carne, ofereceu, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas Àquele que O podia salvar da morte, e foi atendido pela Sua piedade" (5, 7). Para a Carta aos Hebreus é elemento essencial do nosso ser humano a compaixão, o sofrer com os outros: esta é a verdadeira humanidade. Não é o pecado, porque o pecado nunca é solidariedade, mas é sempre uma não-solidariedade, um tomar a vida para mim mesmo, em vez de a doar. A verdadeira humanidade é participar realmente no sofrimento do ser humano, significa ser um homem de compaixão metriopathein, – diz o texto grego – isto é, estar no centro da paixão humana, carregar realmente com os outros os seus sofrimentos, as tentações deste tempo: "Deus, onde estás neste mundo?".
Esta humanidade do sacerdote não corresponde ao ideal platónico e aristotélico, segundo o qual o verdadeiro homem seria aquele que vive unicamente na contemplação da verdade, e assim é bem-aventurado, feliz, porque tem só amizade com as coisas belas, com a beleza divina, mas "os trabalhos" fazem-nos os outros. Esta é uma suposição, enquanto que aqui se supõe que o sacerdote entre como Cristo na miséria humana, a leve consigo, vá ao encontro das pessoas sofredoras, se ocupe delas, e não só exteriormente, mas assuma interiormente sobre si, reúna em si mesmo a "paixão" do seu tempo, da sua paróquia, das pessoas que lhe são confiadas. Assim Cristo mostrou o verdadeiro humanismo. Certamente o seu coração está sempre fixo em Deus, vê sempre Deus, intimamente está sempre em diálogo com Ele, mas Ele carrega, ao mesmo tempo, todo o ser, todo o sofrimento humano entra na Paixão. Falando, vendo os homens que são pequenos, sem pastor, Ele sofre com eles e nós sacerdotes não podemos retirar-nos num Elysium, mas estamos imersos na paixão deste mundo e devemos, com a ajuda de Cristo e em comunhão com Ele, procurar transformá-lo, guiá-lo para Deus.
Precisamente, isto é preciso dizê-lo, com o seguinte texto realmente estimulante: "ofereceu orações e súplicas com fortes gritos e lágrimas" (Hb 5, 7). Esta não é só uma menção à hora da angústia no Monte das Oliveiras, mas é um resumo de toda a história da paixão, que engloba toda a vida de Jesus. Lágrimas: Jesus chorava diante do túmulo de Lázaro, estava realmente comovido interiormente pelo mistério da morte, do terror da morte. Pessoas perdem o irmão, como neste caso, a mãe perde o filho, o amigo: toda a terribilidade da morte, que destrói o amor, que destrói as relações, que é um sinal da nossa finitude, da nossa pobreza. Jesus é colocado à prova e confronta-se até ao profundo da sua alma com este mistério, com esta tristeza que é a morte, e chora. Chora diante de Jerusalém, vendo a destruição da bonita cidade por causa da desobediência; chora vendo todas as destruições da história no mundo; chora ao ver como os homens se destroem a si mesmos e às suas cidades na violência, na desobediência.
Jesus chora com fortes gritos. Sabemos pelos Evangelhos que Jesus gritou da Cruz, bradou: "Meu Deus, Meu Deus, porque Me abandonas-Te?" (Mc 15, 34; cf. Mt 27, 46), e bradou mais uma vez no fim. E este brado responde a uma dimensão fundamental dos Salmos: nos momentos terríveis da vida humana, muitos Salmos são um forte grito a Deus: "Ajuda-nos, ouve-nos!". Precisamente hoje, no Breviário, rezámos neste sentido: Onde estás, Deus? "Entregastes-nos como ovelhas para o matadouro" (Sl 44, 12). Um grito da humanidade sofredora! E Jesus, que é o verdadeiro sujeito dos Salmos, leva realmente este grito da humanidade a Deus, aos ouvidos de Deus: "Ajudai-nos e ouvi-nos!". Ele transforma todo o sofrimento humano, assumindo-o sobre si mesmo, num grito aos ouvidos de Deus.
E assim vemos que precisamente deste modo realiza o sacerdócio, a função do mediador, transportando em si, assumindo em si o sofrimento e a paixão do mundo, transformando-os em grito a Deus, levando-os diante dos olhos e das mãos de Deus, e assim levando-os realmente ao momento da Redenção. Na realidade a Carta aos Hebreus diz que "ofereceu orações e súplicas", "gritos e lágrimas" (5, 7). É uma tradução justa do verbo prospherein, que é uma palavra cultual e exprime o acto da oferenda dos dons humanos a Deus, exprime precisamente o acto do ofertório, do sacrifício. Assim, com este termo cultual aplicado às orações e lágrimas de Cristo, demonstra que as lágrimas de Cristo, a angústia do Monte das Oliveiras, o grito da Cruz, todo o seu sofrimento não são uma coisa ao lado da sua grande missão. Precisamente deste modo Ele oferece o sacrifício, com o qual se torna sacerdote. A Carta aos Hebreus com este "ofereceu", prospherein, diz-nos: esta é a realização do seu sacerdócio, assim leva a humanidade a Deus, deste modo faz de mediador, faz-se sacerdote.
Dizemos, justamente, que Jesus não ofereceu a Deus algo, mas ofereceu-se a si mesmo e este oferecer-se a si mesmo realiza-se precisamente nesta compaixão, que transforma em oração e em grito ao Pai o sofrimento do mundo. Neste sentido também o nosso sacerdócio não se limita ao acto cultual da Santa Missa, no qual tudo é colocado nas mãos de Cristo, mas toda a nossa compaixão em relação ao sofrimento deste mundo tão distante de Deus, é acto sacerdotal, é prospherein, é oferecer. Neste sentido, parece-me que devemos entender e aprender a aceitar mais profundamente os sofrimentos da vida pastoral, porque é exactamente esta a acção sacerdotal, é mediação, é entrar no mistério de Cristo, é comunicação com o mistério de Cristo, muito real e essencial, existencial e depois sacramental.
É importante uma segunda palavra neste contexto. Diz-se que Cristo assim – através desta obediência – torna-se perfeito, em grego teleiotheis (cf. Hb 5, 8-9). Sabemos que em toda a Torah, isto é, em toda a legislação cultual, a palavra teleion, aqui usada, indica a ordenação sacerdotal. Ou seja, a Carta aos Hebreus diz-nos que precisamente fazendo isto Jesus foi proclamado sacerdote, realizou-se o seu sacerdócio. A nossa ordenação sacerdotal sacramental deve ser realizada e concretizada existencialmente, mas também de modo cristológico, precisamente neste carregar o mundo com Cristo e para Cristo e, com Cristo, para Deus: assim tornamo-nos realmente sacerdotes, teleiotheis. Por conseguinte, o sacerdócio não é uma coisa por algumas horas, mas realiza-se precisamente na vida pastoral, nos seus sofrimentos e nas suas debilidades, nas suas tristezas e também, naturalmente, nas alegrias. Assim, tornamo-nos cada vez mais sacerdotes em comunhão com Cristo.
Por fim, a Carta aos Hebreus resume toda esta compaixão na palavra hypakoen, obediência: tudo isto é obediência. É uma palavra que não nos agrada, no nosso tempo. Obediência parece uma alienação, uma atitude servil. Uma pessoa não usa a sua liberdade, a sua liberdade submete-se a outra vontade, por conseguinte, já não se é livre, mas determinado por outro, enquanto a autodeterminação, a emancipação seria a verdadeira existência humana. Em vez da palavra "obediência", nós queremos como palavra-chave antropológica "liberdade". Mas considerando de perto este problema, vemos que as duas coisas caminham juntas: a obediência de Cristo é conformidade da sua vontade com a vontade do Pai; é um levar a vontade humana à vontade divina, à conformação da nossa vontade com a vontade de Deus.
São Máximo o Confessor, na sua interpretação do Monte das Oliveiras, da angústia expressa precisamente na oração de Jesus, – "não a minha, mas a tua vontade", – descreveu este processo, que Cristo leva em si como verdadeiro homem, com a natureza, a vontade humana; neste acto "não a minha, mas a tua vontade" Jesus resume todo o processo da sua vida, isto é, do levar a vida natural humana à vida divina e deste modo transformar o homem: divinização do homem e assim redenção do homem, porque a vontade de Deus não é uma vontade tirana, não é uma vontade que está fora do nosso ser, mas é precisamente a vontade criadora, é precisamente o lugar onde encontramos a nossa verdadeira identidade.
Deus criou-nos e somos nós próprios se formos conformes com a sua vontade; só assim entramos na verdade do nosso ser e não somos alienados. Ao contrário, a alienação actua-se precisamente saindo da vontade de Deus, porque deste modo saímos do desígnio do nosso ser, já não somos nós próprios e caímos no vazio. Na realidade, a obediência a Deus, isto é, a conformidade, a verdade do nosso ser, é a verdadeira liberdade, porque é a divinização. Jesus, levando o homem, o ser homem, em si e consigo, na conformidade com Deus, na obediência perfeita, isto é na perfeita conformação entre as duas vontades, remiu-nos e a redenção é sempre este processo de levar a vontade humana na comunhão com a vontade divina. É um processo pelo qual rezamos todos os dias: "seja feita a tua vontade". E queremos rezar realmente ao Senhor, para que nos ajude a ver intimamente que esta é a liberdade, a entrar, assim, com alegria nesta obediência e a "colher" o ser humano para o levar – com o nosso exemplo, com a nossa humildade, com a nossa oração e com a nossa acção pastoral – à comunhão com Deus.
Continuando a leitura, segue uma frase difícil de interpretar. O Autor da Carta aos Hebreus diz que Jesus rezou intensamente, com gritos e lágrimas, Deus que o podia salvar da morte e, pelo seu pleno abandono, foi ouvido (cf. 5, 7). Aqui gostaríamos de dizer: "Não, não é verdade, não foi ouvido, morreu". Jesus pediu para ser libertado da morte, mas não o foi, morreu de modo muito cruel. Por isso o grande teólogo liberal Harnak disse: "Aqui falta um não", deve ser escrito: "Não foi ouvido" e Bultmann aceitou esta interpretação. Mas esta é uma solução que não é exegese, mas uma violência ao texto. Em nenhum dos manuscritos há a palavra "não", mas "foi ouvido"; portanto, devemos aprender a compreender o que significa este "ser ouvido", apesar da Cruz.
Eu vejo três níveis para compreender esta expressão. Num primeiro nível pode-se traduzir o texto grego do seguinte modo: "foi remido da sua angústia" e neste sentido, Jesus foi ouvido. Portanto, seria uma menção a quanto nos narra São Lucas que "um anjo fortaleceu Jesus" (cf. Lc 22, 43), de modo que, depois do momento da angústia, pudesse ir directo e sem receio rumo à sua hora, como nos descrevem os Evangelhos, sobretudo o de São João. Seria a satisfação, no sentido que Deus lhe dá a força para carregar todo este peso e assim é ouvido. Mas a mim parece que se trata de uma resposta não totalmente suficiente. Ouvido em sentido mais profundo – Padre Vanhoye ressaltou-o – significa: "foi remido da morte", mas não no momento, naquele momento, mas para sempre, na Ressurreição: a verdadeira resposta de Deus à oração de ser remido da morte é a Ressurreição e a humanidade é remida pela morte precisamente na Ressurreição, que é a verdadeira cura dos nossos sofrimentos, do mistério terrível da morte.
Já está presente aqui um terceiro nível de compreensão: a Ressurreição de Jesus não é só um acontecimento pessoal. Parece-me que serve de ajuda ter presente o breve texto no qual São João, no Capítulo 12 do seu Evangelho, apresenta e narra, de modo muito resumido, o evento do Monte das Oliveiras. Jesus diz: "A minha alma está perturbada" (Jo 12, 27) e, em toda a angústia do Monte das Oliveiras, o que direi?: "Ou salva-me desta hora, ou glorifica o teu nome" (cf. Jo 12, 27-28). É a mesma oração que encontramos nos Sinópticos: "Se possível afasta de Mim este cálice, mas seja feita a tua vontade"(cf. Mt 26, 42; Mc 14, 36; Lc 22, 42), que na linguagem de João aparece precisamente: "Ou salva-me, ou glorifica-me". E Deus responde: "Glorifiquei-te e glorificar-te-ei no futuro" (cf. Jo 12, 28). Esta é a resposta, o ouvir divino: glorificarei a Cruz; é a presença da glória divina, porque é o acto supremo do amor. Na Cruz, Jesus é elevado sobre toda a terra e atrai para si a terra; na Cruz está agora o "kabod", a verdadeira glória divina do Deus que ama até à Cruz e assim transforma a morte e cria a Ressurreição.
A oração de Jesus foi ouvida, no sentido que realmente a sua morte se torna vida, se torna lugar de onde redime o homem, de onde atrai o homem para si. Se a resposta divina em João diz: "glorificar-te-ei", significa que esta glória transcende e atravessa toda a história sempre e de novo: da tua Cruz, presente na Eucaristia, transforma a morte em glória. Esta é a grande promessa que se realiza na Sagrada Eucaristia, que abre sempre de novo o céu. Ser servo da Eucaristia é, por conseguinte, profundidade do mistério sacerdotal.
Mais uma breve palavra, pelo menos sobre Melquisedec. É uma figura misteriosa que entra na história sagrada em Génesis 14: depois da vitória de Abraão sobre alguns Reis, aparece o Rei de Salem, de Jerusalém, Melquisedec, e traz pão e vinho. Uma história não comentada e um pouco incompreensível, que aparece de novo só no Salmo 110, como já foi dito, mas compreende-se que depois o Hebraísmo, o Gnosticismo e o Cristianismo tenham querido reflectir profundamente sobre esta palavra e tenham criado as suas interpretações. A Carta aos Hebreus não faz especulações, mas refere apenas quanto diz a Escritura e são diversos elementos: é Rei de justiça, habita na paz, é Rei onde reina a paz, venera e adora o Deus Altíssimo, o Criador do céu e da terra, e leva pão e vinho (cf. Hb 7, 1-3; Gn 14, 18-20). Não é comentado que aqui aparece o Sumo Sacerdote do Deus Altíssimo, Rei da paz, que adora com pão e vinho o Deus Criador do céu e da terra. Os Padres ressaltaram que é um dos santos pagãos do Antigo Testamento e isto mostra que também do paganismo há um caminho para Deus e os critérios são: adorar o Deus Altíssimo, o Criador, cultivar justiça e paz, e venerar Deus de modo puro. Assim, com estes elementos fundamentais, também o paganismo está a caminho rumo a Cristo, torna de certa forma presente a luz de Cristo.
No cânone romano, depois da Consagração, temos a oração supra quae, que menciona algumas prefigurações de Cristo, do seu sacerdócio e do seu sacrifício: Abel, o primeiro mártir, com o seu cordeiro; Abraão, que sacrifica na intenção o filho Isaac, substituído pelo cordeiro dado por Deus; e Melquisedec, Sumo Sacerdote do Deus Altíssimo, que leva pão e vinho. Isto significa que Cristo é a novidade absoluta de Deus e, ao mesmo tempo, está presente em toda a história, através da história, e a história vai ao encontro de Cristo. E não só a história do povo eleito, que é a verdadeira preparação desejada por Deus, na qual se revela o mistério de Cristo, mas também pelo paganismo se prepara o mistério de Cristo, existem caminhos para Cristo, o qual leva tudo em si.
Isto parece-me importante na celebração da Eucaristia: aqui está reunida toda a oração humana, todo o desejo humano, toda a verdadeira devoção humana, a verdadeira busca de Deus, que se encontra finalmente realizada em Cristo. Por fim, deve ser dito que agora está aberto o céu, o culto já não é enigmático, em sinais relativos, mas é verdadeiro, porque o céu está aberto e não se oferece algo, mas o homem torna-se um com Deus e este é o verdadeiro culto. Diz assim a Carta aos Hebreus: "o nosso sacerdote está à direita do trono, do santuário, da verdadeira tenda, que o próprio Senhor construiu" (cf. 8, 1-2).
Voltemos ao ponto em que Melquisedec é Rei de Salem. Toda a tradição davídica se referiu a isto dizendo: "Aqui é o lugar, Jerusalém é o lugar do verdadeiro culto, a concentração do culto a Jerusalém já vem dos tempos abraâmicos, Jerusalém é o verdadeiro lugar da veneração justa de Deus".
Façamos um novo passo: a verdadeira Jerusalém, a Salem de Deus, é o Corpo de Cristo, a Eucaristia é a paz de Deus com o homem. Sabemos que São João, no Prólogo, chama a humanidade de Jesus "a tenda de Deus", eskenosen en hemin (Jo 1, 14). Aqui o próprio Deus criou a sua tenda no mundo e esta tenda, esta nova, verdadeira Jerusalém está, ao mesmo tempo, na terra e no céu, porque este Sacramento, este sacrifício se realiza sempre entre nós e chega sempre até ao trono da Graça, à presença de Deus. Aqui é a verdadeira Jerusalém, ao mesmo tempo, celeste e terrestre, a tenda, que é o Corpo de Deus, que como Corpo ressuscitado permanece sempre Corpo e abraça a humanidade e, ao mesmo tempo, sendo Corpo ressuscitado, nos une com Deus. Tudo isto se realiza sempre de novo na Eucaristia. E nós como sacerdotes somos chamados a ser ministros deste grande Mistério, no Sacramento e na vida. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender cada vez melhor este Mistério, que nos faça viver cada vez melhor este Mistério e deste modo oferecer a nossa ajuda para que o mundo se abra a Deus, a fim de que o mundo seja remido. Obrigado.





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Para a sua lectio divina Bento xvi inspirou-se nos trechos da Carta aos Hebreus que aqui publicamos.
5, 1-10

7, 26-28

8, 1-2



Fonte: pt.wikepedia.org  /www.vatican.va/phone_po.htm

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